A Constituição de 1838

AutorJúlio Rodrigues da Silva
Páginas585-596

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I Uma morte anunciada?

A Constituição de 1838 foi muitas vezes reduzida a um fenómeno efémero, condenado desde o início ao fracasso 1 . A importância, tradicionalmente concedida ao golpe de estado de António Bernardo da Costa Cabral (27/01/1842), contribuiu para perpetuar esta ideia na memória colectiva. De igual modo, a valorização excessiva do cabralismo acentuou a tendência para reduzi-la a uma mera transição entre dois tempos fortes: a Revolução de Setembro de 1836 e a restauração da Carta Constitucional de 1826, a 10 de Fevereiro de 1842. O curto período da sua vigência entre 4 de Abril de 1838 e 10 de Fevereiro de 1842 também não a favoreceu no conceito dos historiadores e constitucionalistas portugueses. O seu aspecto híbrido reforçou a imagem de breve interlúdio numa história constitucional portuguesa, do século XIX, dominada pela Carta de 1826. Assim sendo, a inevitabilidade da queda da Constituição de 1838 surge aos olhos dos contemporâneos como inscrita, desde o início nos acontecimentos políticos subsequentes à Revolução de 9 de Setembro de 1836. Vítima de um destino inexorável, o tempo da sua existência reduz-se ao tempo de uma degradação contínua do texto original subvertido pelo cabralismo em ascensão. O insucesso relativo desta experiência constitucional levou os historiadores e constitucionalistas portugueses a terem uma visão céptica e pessimista da sua capacidade de adaptação à realidade política portuguesa 2 . Contudo, a curta vigência da Constituição de 1838 não pode servir para deduzir uma fragilidade intrínseca do texto constitucional na procura de soluções para os problemas nacionais. Aliás, a sua credibilidade junto da classe política permite-lhe ser referida nas posteriores reformas, ou tentativas de reforma, da Carta e atesta a relevância das suas propostas para o constitucionalismo português de oitocentos..3 . O facto de ter ficado do lado dos “vencidos da história” não a impede de ter uma vida própria, impossível de ser ignorada, sem se correr o risco de tornar ininteligível a compreensão do século XIX. Na verdade, representa de forma legítima um momento essencial da história constitucional e política portuguesa ao lado dos outros dois textos fundadores do liberalismo: a Constituição de 1822 e a Carta de 1826.

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II A revolução de setembro

No entanto, a sua relevância histórica só é integralmente perceptível se a relacionarmos com os acontecimentos políticos iniciados com a Revolução de 9 de Setembro de 1836. Nesta data, o triunfo da esquerda e da extremaesquerda afasta a direita liberal do poder de forma permanente. A revolução, ao derrubar a Carta Constitucional de 1826, marca o regresso à Constituição de 1822 e a uma experiência ministerial do liberalismo de esquerda, sob a chefia de Passos Manuel. Este governa no período entre 10 de Setembro de 1836 e 1 de Junho de 1837, parcialmente em “ditadura”, ou seja, sem o parlamento estar reunido, até ao início das Cortes Extraordinárias e Constituintes em 18 de Janeiro de 1837. As reformas realizadas durante este tempo no campo económico, social, administrativo, jurídico, cultural e educativo, tornaram-no um dos primeiros artífices da modernização liberal do Portugal de oitocentos. A direita liberal, excluída do poder, passa a intitular-se cartista tomando como bandeira a preservação da legalidade e legitimidade da Carta Constitucional de 1826. A esquerda liberal fica, a partir daqui, conhecida como setembrista devido à ruptura política produzida pela revolução. A Constituição de 1822 e, posteriormente a Constituição de 1838 são as suas referências constitucionais, embora aceite ao longo do século fazer cedências ao cartismo. A mais significativa é a aceitação da Carta de 1826, reformada pelo Acto Adicional de 1852, como base do regime liberal no início da Regeneração (1851).

O facto dos cartistas não concorrerem às eleições de 20 Novembro de 1836, praticamente em nenhum círculo eleitoral permitiu ao governo de Passos Manuel contar com o apoio das autoridades administrativas para proporem e elegerem os seus candidatos. Assim sendo, não é de estranhar o predomínio quase exclusivo dos setembristas nas Cortes Constituintes, com as honrosas excepções dos deputados: Pereira de Lemos e Gorjão Henriques. No entanto, o setembrismo presente no parlamento não era homogéneo dividindo-se em três grandes agrupamentos: os ordeiros ou setembristas vitalícios situando-se no centro direito, os setembristas moderados no centro esquerdo e os setembristas radicais, ou exaltados, na extrema-esquerda. A convocação das eleições para as Cortes Extraordinárias e Constituintes foi feita pelo decreto de 10 de Setembro de 1836, reduzindo o papel dos deputados a uma simples revisão do texto da Constituição de 22 de Setembro de 1822 4 . Esta disposição foi alterada pelo decreto de 6 de Novembro de 1836, devido a um acordo entre ordeiros e setembristas moderados, na sequência do golpe de estado falhado dos cartistas, de 6 de Novembro de 1836, a Belenzada. As bases da nova constituição seriam, simultaneamente a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 passíveis alteraçôes e conciliação no texto constitucional 5 . O levantamento militar cartista, conhecido sob a designação de Revolta dos Marechais, iniciou-se a 12 de Julho de 1837 no Minho. A suspensão das liberdades individuais, nomeadamente da liberdade de imprensa a 14 de Julho de 1837, implicou a imediata interrupção do debate

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constitucional até 27 de Setembro de 1837. A rebelião deu origem a uma guerra civil marcada pelo insucesso do ataque cartista a Lisboa em 21 de Agosto de 1837, o impasse militar da combate de Chão de Feira em 28 de Agosto de 1837, a vitória setembrista no confronto de Ruivães em 18 de Setembro de 1837. Derrotados, os cartistas assinaram uma convenção com os seus adversários em 20 de Setembro abandonando definitivamente a luta 6 . O clima de guerra civil criou um ambiente favorável a uma experiência revolucionária vivida de forma intensa, principalmente em Lisboa. A radicalização política foi evidente na capital onde a população pegou em armas para enfrentar as forças do exército, leais aos dois marechais: Saldanha e Terceira. A extrema-esquerda com o apoio dos batalhões da guarda nacional e dos clubes políticos tornou-se predominante em Lisboa. Assim sendo, passou a dispor duma grande capacidade para pressionar as Cortes e o governo, surgindo como uma força militar concorrente do exército 7 . O debate constitucional foi retomado a 27 de Setembro de 1837, mas não significou o regresso da tranquilidade e da segurança ao país. As guerrilhas miguelistas mantiveram o Alentejo e o Algarve sob um estado de guerra permanente até 1840. As divergências entre os moderados e os radicais no campo setembrista conduziu a um confronto entre o exército e a guarda nacional de Lisboa. O Massacre do Rossio, 13 de Março de 1838, traduziu-se no esmagamento da guarda nacional às mãos do exército e ao fim da ala militar do radicalismo lisboeta. O insucesso dos motins de 14 de Junho desse mesmo ano vieram confirmar esta realidade. O equilíbrio de forças deslocou-se para a direita, beneficiando a posição dos setembristas moderados no parlamento e no governo.

A discussão constitucional foi influenciada pela evolução política, acompanhando as vicissitudes do processo revolucionário. O inicial desejo dos setembristas de restaurar a Constituição de 1822 com um mínimo de alterações, em Setembro de 1836, deu lugar após a Belenzada de Novembro desse ano, a um esforço de conciliação com a Carta Constitucional de 1826. Desde a abertura das Cortes em Janeiro de 1837 até ao esmagamento da Revolta dos Marechais em Agosto desse ano, o confronto entre os liberais foise desenvolvendo em torno da possível reposição sob uma forma moderna da Constituição de 1822. Nos meses posteriores emergiu a pressão crescente para obter uma versão final do texto da Constituição de 1838 mais conservadora. O sinal mais evidente desta tendência foi a intervenção de Sá da Bandeira no rescaldo da derrota da Revolta de Marechais em Outubro de 1837. Com efeito, fez depender a aceitação da presidência do novo ministério,

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10/08/1837, da mudança, pelos deputados, da organização da segunda câmara de eleição popular. Invocou a necessidade de proteger o novo texto constitucional dos seus numerosos inimigos, através de um corpo, constituído por pessoas interessadas na sua manutenção, nomeados pela coroa 8. A ameaça acabou por ter sucesso tendo as Cortes inserido um novo artigo, autorizando a próxima legislatura a alterar a constituição do Senado. O enfranquecimento das posições da extrema-esquerda, depois dos acontecimentos de Março de 1838, veio igualmente favorecer a sua adopção juntamente com o veto absoluto do rei. Assim sendo, o texto final da Constituição de 1838, aprovado e jurado pela rainha D. Maria II a 4 de Abril desse ano, é o resultado do debate entre os diferentes projectos e propostas dos deputados, mas em igual medida do contexto político onde se insere.

III As cortes extraordinárias e constituintes

Os projectos constitucionais apresentados nas Cortes Extraordinárias e Constituintes, 18/01/1837-04/08/1838, traduziam a relação de forças entre as diferentes correntes setembristas e as principais questões a debater na elaboração da futura constituição. Não constitui nenhuma surpresa a ausência de um projecto constitucional cartista devido ao facto de só existirem dois cartistas assumidos na Constituinte. Apresentaram pequenas modificações à Carta Constitucional de 1826 sem tocarem no essencial e com um impacto insignificante no subsequente debate constitucional 9 . No campo da extremaesquerda a corrente dominante defendia a manutenção da Constituição de 1822 com um mínimo de alterações. O deputado Manuel Santos Cruz apresentou, no dia 1...

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